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A morte na vida

  • Marcelo Kassab
  • Dec 29, 2022
  • 4 min read

Updated: Jan 13, 2023

O receio de morrer prejudica o nosso bem viver, fazendo a existência tornar-se mais urgente frente ao fim iminente...

Quantos dias até o último dia? O que pensas enquanto ainda respiras?


Olhe para você.


Toque seu rosto, braços e pernas. Apalpe imageticamente suas vísceras e imagine o trabalho destas na engrenagem perfeita que compõe o corpo humano. Agora, perceba suas qualidades, seus sentidos, defeitos, aprendizados e sonhos ainda não realizados.


Nem tudo aquilo que nos constitui pode ser tateado.


Enquanto compunha o texto com as interrogações que iniciam esta reflexão, perguntava-me o que somos para além de nós mesmos, e o que de nós será, após o desenlace final. A supremacia da morte ao calar o grito da gênese.


O choro é o primeiro acorde exteriorizado da existência. O ato de chorar integra o bebê ao novo meio, adaptando sua respiração e circulação sanguínea ao mundo.


Muito antes disso, éramos o “nada” transformando-se em matéria?


Mas, e depois da matéria? Seremos o “nada" novamente? E o que seria o "nada”? Ausência do “tudo” ou de qualquer coisa? O impalpável? Invisível? Alma? Espírito?


Os existencialistas diriam que é o sentimento angustiante a nos assolar quando não conseguimos respostas satisfatórias às questões existenciais. Heidegger e Sartre pensam o "nada" como algo real em oposição ao "ser".


E para “ser”... Basta existir apenas de modo objetivo?


Certa vez — no meu consultório, durante uma consulta odontológica de rotina —, um garoto de 12 anos acompanhado de sua mãe e já pressentindo sua passagem devido a uma doença degenerativa, perguntou-me como era a morte; se morrer doía.


A questão era essencial, pois ele parecia ignorar o "ser", indo diretamente para o vazio, trazendo à tona (inconscientemente) questões como o medo da dor aliado ao “nada” discutido no existencialismo. Seus músculos faciais estavam tensos e a comissura labial tomava um trajeto descendente, prenunciando lágrimas que insistiam em se manter reclusas, aumentando ainda mais a apreensão que o consumia.


Fiquei, por alguns eternos segundos, absorto, esperando não sei bem o quê.


Talvez ansiasse por uma inspiração divina, enquanto tentava resgatar alguma lembrança de um tempo que não sei se vivi ou morri.


Precisava pensar rápido, pois as crianças são pragmáticas e avessas a divagações. Ponderei, respirando de modo ofegante e, com o coração taquicárdico pela liberação do hormônio que prenuncia a fuga, teimosamente eu finquei os meus pés no chão.


Encarei o garoto, tentando manter o mesmo equilíbrio que aquele menino ainda demonstrava e com a falsa certeza de alguma reminiscência, altivo, disse que morrer era a parte mais fácil da vida.


Do alto da minha insegurança e meio engessado perante o olhar incrédulo e insatisfeito da criança, percebi que até o pragmatismo tem limites.


E repare, leitor, como a filosofia pode ser relevante nos momentos mais extremos da nossa existência, já que – ao contrário dos animais – temos consciência da nossa finitude.


Remeti-me ao pensamento de Epicuro, que tratava a morte como quimera, ou seja, enquanto existirmos, ela não existe, e quando ela surgir, nós é que não existiremos.


Parece simples? Quem disse que a filosofia é complicada?


“Desse modo, temer o quê?”, diria Montaigne ao afirmar ser a morte uma forma de libertação e que felizes são aqueles que assim a consideram.


Direcionei-me novamente ao menino e me rendi ao pudor da ignorância confessa. Disse que ainda estava aprendendo a viver, e o viver, este sim, é doloroso. Aquilo era uma obviedade ao já sofrido garoto, mas urgia fazê-lo entender que não haveria dor e sofrimento maiores do que os suportados em vida, sendo a morte o desligar-se de tudo, inclusive dos nossos suplícios.


O receio de morrer prejudica o nosso bem viver, fazendo a existência tornar-se mais urgente frente ao fim iminente ‒ já que a vida é considerada curta ‒ e tal premência pode levar à pressa e atropelos, mascarando os nossos sentidos e a verdadeira razão de estarmos por aqui.


Para Schopenhauer, a maior aflição do homem frente ao finamento reside na preocupação do corpo acima da essência, trazendo uma ansiedade metafísica. É a vida ilhada, cercada pelo “nada”. Assim, o apego ao que aqui deixaremos, torna-nos inseguros quanto ao porvir.


Mas, e se o corpo fosse imortal? Conseguiríamos dar um sentido à existência terrena?


A percepção da finitude deveria fazer do homem o senhor dos seus caminhos e daquilo que deve ser relevante nessa curta permanência pelo mundano. O que estamos realmente valorizando nessa passagem pelo mundo?


Convivemos diariamente com finais provisórios como o dia, a noite, tarefas, despedidas e mudanças... Por isso, imagino que os pequenos fins sejam o modo encontrado pela vida com o intuito de nos preparar para a finitude mais aterradora de todas, mas que, contraditoriamente, pode representar o único passaporte humano para a eternidade.


A religião dá destino à morte de modo sentenciado, vendendo a ideia da imortalidade como recompensa ao sofrimento do corpo, pois você é considerado um pecador contumaz. Já a filosofia se apega ao livre pensamento, a fim de que lidemos com as angústias inseridas nesse tema espinhoso, livremente, e sem o apelo dogmático.


Quando menciono ‘’eternidade’’, não estou me rendendo aos dogmas, mas por acreditar que a nossa perpetuidade se traduz além do corpo e da alma.


Portanto, para os que creem na alma eterna, viveremos no etéreo, algo discutido no Fédon (um dos mais belos diálogos platônicos), que se dedica à imortalidade do espírito e onde estaria a verdade.


Contudo, para os descrentes da infinitude — como Nietzsche, o qual discordava da transcendência e afirmava não haver significado fora da vida em si —, ainda assim, a nossa eternidade residirá nas realizações e nos legados plantados e enraizados, bem como na intensidade que dispensamos à vida até o suspiro final, antes da última conexão neural e do derradeiro acorde entoado no cessar de sístoles e diástoles.


Aquele diálogo com um menino prestes a partir, fez-me entender a morte como condição sine qua non para a busca da melhor maneira de se viver, porém, com a superficialidade que protagoniza nossos dias, corremos o sério risco de sucumbir sem nunca termos existido plenamente.


Após minutos de um silêncio reflexivo, o garoto ensaiou um tímido sorriso e despediu-se com aceno discreto, enquanto sua outra mão procurava as mãos maternas. Já estava escurecendo e o trajeto para a sua casa não era tão seguro.


Por um momento, os temores da vida suplantaram seu medo da morte.


E você, como lida com as suas finitudes?


Responda nos comentários abaixo.


Marcelo Kassab.

Escritor e Cirurgião dentista.




 
 
 

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