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A crença do fim dos tempos e as teorias conspiratórias sobre o papa Leão XIV: por que ainda acreditamos?

Atualizado: 6 de set.

A associação da figura do Anticristo com o papado foi empregada pelos próprios papas para desqualificar os seus adversários....

A crença do fim dos tempos é altamente disseminada em nossa sociedade. Podemos encontra-la em filmes e séries, em literatura, jogos e em letras de música. Talvez, o exemplo mais recente seja “O Eternauta”, uma adaptação realizada pela Netflix das HQs do argentino Héctor Germán Oesterheld.


Para além da cultura pop, as teorias sobre o fim dos tempos são facilmente vistas na boca de alguns religiosos que buscam – em eventos do nosso tempo – identifica-las, ou lê-las, como cumprimentos de trechos do texto do livro Apocalipse. Com o advento das redes sociais, essas narrativas ganharam ainda mais força, sendo facilmente observadas em postagens e vídeos de plataformas digitais, como o YouTube, Instagram e TikTok.


Nos últimos dias, após a eleição do papa Leão XIV, uma nova teoria conspiratória se espalhou e vem ganhando força a tal ponto de se tornar tema de matéria de jornais, tais como como G1[1], Metrópoles[2] e ND Mais[3]. Segundo os jornais analisados, a suposta profecia de fim dos tempos conecta o nome papal do cardeal Robert Prevost com Apocalipse 13:2, onde diz o seguinte:


“E a besta que vi era semelhante a um leopardo e as patas dela [eram] como de urso e a boca dela como boca de leão. E o dragão deu-lhe o seu poder e o seu trono e grande autoridade”[4].


A expressão “boca de leão” e a nacionalidade do cardeal eleito seriam peças-chaves para essa suposta profecia, pois sinalizariam a união entre o Vaticano e os EUA; e a evidência disso seria o fato de Proust ter decidido se chamar Leão XIV. Aliado a isso, internautas trouxeram, novamente, à tona os vídeos de Daniel Mastral[5] sobre o fim do mundo e o papado.


É válido lembrar que, anteriormente à eleição de Leão XIV, viralizou (também) outra teoria conectada com a morte de Francisco I. No caso, a conhecida teoria dos papas, erroneamente atribuída a Malaquias[6].


Contudo, é importante salientar que profecias sobre o fim dos tempos e teorias conspiratórias, que tentam conectar Apocalipse com os papas, não são nenhuma novidade no Ocidente, pois se instauraram ainda na Idade Média.


Segundo Jean Delumeau (2009) e Vanderlei Dorneles (2019), essas conexões já são encontradas em autores como Joaquim de Fiore, John Huss e Wycliffe. A associação da figura do Anticristo com o papado, segundo Leandro Rust (2011, p.272), também foi empregada pelos próprios papas para desqualificar os seus adversários. Esse foi o caso de Guiberto de Ravenna, conhecido como antipapa Clemente III. Este foi, em diferentes momentos, excomungado por "inaudita heresia e soberba" e apontado como um “emissário do Anticristo”, como é possível ler no fragmento abaixo:


[...] heresiarca que, enquanto vivia o papa Gregório, meu predecessor de santa memória, invadiu a igreja romana, emissário do Anticristo e portador da realização de Satanás, não cessa de oprimir, dilacerar e matar as ovelhas de Cristo. [...] perjuro sobre o sacerdócio e simoníaco, [...] estando o próprio excomungado e condenado, ele mesmo ousou excomungar o santo pontífice, [...] [agindo] por sacrilégios, homicídios, perjúrios, conspirações, torpezas [...] (CHRONICA CASINENSIS, 1846, tomo VII, p. 751-752).


Quando nos voltamos para o mundo das imagens, observamos como essa associação (entre o papado e o texto de Apocalipse) foi amplamente explorada em diferentes contextos (Figuras 1, 2 e 3).


Figura 1. Monstro com cabeça de burro, sugerindo a decadência do papado. O papa é representado com uma cabeça de leão. Wenzel von Olmütz. 1496-1500. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_E-1-15 

Figura 2. O papa é coroado por dois demônios. Lucas Cranach. Xilogravura. 1524. Obtido em:

Figura 3: Cardeais representados como jacarés. Thomas Nast. 1876. Harper’s Weekly. Cartoon. Obtido em: Wikipédia.


Dos casos ilustrados acima, é interessante observar a Figura 3, onde o Vaticano é visto como uma ameaça à democracia norte americana, aterrorizando as crianças e jovens. Essa imagem nos remete mais uma vez ao livro de Jean Delumeau. Em História do medo do Ocidente 1300-1800 (2009), o historiador francês nos demonstrou como que o homem sempre teve fascínio por essas histórias de fim dos tempos de uma era ou de uma realidade, pois são formas de catalizar e sistematizar nossa consciência de finitude.


Isso nos ajuda a entender que o livro de Apocalipse não é uma profecia e que a conexão com o papa Leão XIV nem mesmo é inédita. Em outros contextos históricos o texto foi apropriado por diferentes grupos com o intuito de instaurar instabilidade e gerar maior crédito a suas teorias conspiratórias, como é o caso mais especificamente da Figura 4.


Figura 4: Sátira ao papa e a teólogos católicos. À esquerda o franciscano Thomas Murner é representado como um gato. Ao lado dele está Hieronymus Emser, que aparece como um bode. O papa Leão X é apontado como o anticristo e seu rosto é representado como o de um leão. À direita vemos Johannes Eck, representado como um porco, e Jakob Leno, como um cão. Xaligravura, 1521. Obtido em: https://www.bavarikon.de/object/GNM-OBJ-0000000000000002?locale=en&p=&lang=en


Somado a isso, do ponto de vista histórico, precisamos lembrar que todo texto possui contexto, gênero literário, público-alvo e uma motivação para a sua produção. Assim sendo, esses deveriam ser nossos horizontes ao ler o Apocalipse e simultaneamente nos permitiriam compreender esse texto como sendo apenas mais uma documentação produzida por judeus e cristãos, os quais buscaram – por meio do gênero apocalíptico – responder aos incômodos, às angústias e dificuldades de seu tempo.


Uma boa forma de ler historicamente Apocalipse seria colocá-lo lado a lado com textos como 4 Esdras e o Quinto Oráculo Sibilino. Ao assim fazê-lo, nos daríamos conta de que há vários elementos em comum desses textos com Apocalipse, entre eles: Roma como Babilônia, Nero redivivus e interpretação cósmica da história.


Esses paralelos também podem funcionar como um bom argumento para as seguintes questões:


Por que apenas Apocalipse reúne profecias? Por que os demais textos, que se inserem no mesmo gênero e que gozam de alegorias semelhantes ou comuns, não são consideradas?


Essas e outras perguntas possíveis nos levam, rapidamente, à percepção de teorias conspiratórias que não estão interessadas em um olhar histórico. Elas, inclusive, possuem um terreno fecundo, pois se aproveitam e fomentam uma leitura distorcida e hierarquizada da documentação antiga cristã ao pinçar palavras, alegorias e frases da documentação com o intuito de amedrontar e convencer a audiência.


Notas

[4] Tradução do Frederico Lourenço (2018).

[5] Falecido em 2024, Mastral era bastante conhecido nas redes sociais por se apresentar como um satanista e difusor dessas teorias do fim dos tempos. Suas redes, inclusive, seguem ativas.

[6] Artigos com o de Luis Alberto De Boni (2005) demonstram que essa “profecia dos papas” já foi em diferentes momentos acionada e que ela não teria nenhuma conexão com Malaquias. Ela se trata, na verdade, de uma falsificação criada no século XVI.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DELUMEAU, J. Em História do medo do Ocidente 1300-1800. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

 

DORNELES. V. Lutero e seus monstros: como o reformador erigiu fronteiras ao se referir à alteridade. In: Protestantismo em Revista, São Leopoldo, v.45, n. 01, p. 133-150, Jan/Jun, 2019. https://revistas.est.edu.br/PR/article/download/508/437/444

 

RUST, L. O heroísmo ao avesso: os “antipapas” e a memória historiográfica da política papal (1040-1130). In: Revista História (São Paulo) v.30, n.2, p. 266-292, ago/dez 2011.



Juliana Cavalcanti.

Doutora em História e Escritora.





1 comentário


Carlos Bernardino
15 de mai.

Excelente professora e Doutora Juliana. Parabéns

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