Felizes para sempre...
- Douglas Meneghatti
- 5 de set.
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de set.
Corre-se o risco de transformar a felicidade em ilusão, tornando o agora enfadonho e esvaziado....
“Felizes para sempre”! “Até que a morte nos separe”! Ou mesmo, conforme sugere Caio F. Abreu: “Que seja doce”! Fato é que finais felizes não são apenas desejados, fazem parte da nossa própria cultura, que espera sempre pela felicidade dos bons e pela punição dos maus.
É assim com os contos infantis. Quem não conhece a história da Bela e a fera, na qual, após a bela aceitar o pedido de casamento, a fera se transforma num lindo príncipe, os dois se casam até que “viveram felizes para sempre”? Outra semelhante é a Bela adormecida, clássico conto de fadas em que a princesa é liberta de um sono profundo, depois de receber um beijo do príncipe encantado, seu amor verdadeiro. Quanto ao final: “viveram felizes para sempre”. Sabemos que a lista é grande: Os três porquinhos, A Branca de neve, O lobo mau e até o Shrek, dentre outros, com a incidente semelhança no desfecho, que se revela numa fausta aliança com a tão esperada felicidade atemporal que costuma acompanhar as personagens do “bem”.
Trata-se de uma vida encaminhada para um telos[1], de forma que viver passa a ser um estado onírico, no qual se almeja algo além da situação atual. Assim, a felicidade passa a estar diretamente atrelada à expectativa de um porvir melhor, onde finalmente os desejos se plenificariam num bem-estar perene, avesso às intempéries e toda sorte de acontecimentos que poderiam sucumbir o estado alcançado.
Nesse cenário, onde as expectativas se voltam para o futuro e o momento presente passa a ter um caráter propedêutico, as religiões acabam servindo como sentido para uma vida esvaziada em seus aspectos cotidianos, tornando a felicidade dependente de algum aspecto transcendente que o capital, ou a religião oferece, mas que, ao fim, não passa de uma quimera[2], tão real quanto o destino da Bela Adormecida ou de qualquer outra personagem dos clássicos infantis.
Embora se apresente um quadro crítico à felicidade e suas implicações, não se pode subestimar a relevância de uma vida feliz. Mas a questão é: de que felicidade se trata? Pois, quando se projeta para o futuro toda a pulsão do presente, ele tende a se tornar enfadonho e até melancólico. Nesse caso, parece fausto concluir que a expectativa de um porvir feliz pode acarretar a própria infelicidade; ou seja, a antecipação do futuro acaba suprimindo as pulsões que deveriam movimentar as afecções do presente. É justamente nesse sentido que o filósofo holandês Spinoza (2019) traz o campo da ética para a imanência, de forma que o viver feliz passa a estar atrelado à alegria de sentir e desfrutar dos acontecimentos e situações que nos constituem com os outros e com o mundo, de forma que, nesse caso, a transcendência passa a estar associada a degenerescência de um indivíduo que, em algum momento, perdeu a intimidade com as pulsões que o envolvem.
Nessa ótica, como fica a dinâmica dos sonhos? Frases de efeito (como a de Augusto Cury: “Sem sonhos, a vida não tem brilho”) alimentam o imaginário social e fazem as pessoas sonharem com a casa própria, com a formatura, com um cônjuge maravilhoso e assim sucessivamente até onde vai o estado onírico capaz de transformar em sonho a efetividade da vida. Novamente, cintila um estado de esperança, uma fé em algo que poderá acontecer e para o qual dedicamos nosso esforço e luta diária. Aliás, a própria esperança remete a um estado de anulação do presente, pois se lança a um porvir incapaz de desfrutar dos acontecimentos em sua imanência.
Ao mencionar o Mito de Pandora, Nietzsche enfatiza justamente o caráter procrastinador da esperança, pois, após deixar sair os mais diversos males de sua caixinha, Pândora repôs a tampa, prendendo nela a esperança: “Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens” (MA I/HH I §71). Para Nietzsche, a esperança também serve de auxiliar para suportar todo o fardo necessário para “fins mais sublimes”, como o paraíso ou a própria felicidade eterna.
Felicidade, sonhos e a própria esperança são palavras chaves que sustentam o empreendimento de muitos coachs, sobretudo daqueles empenhados em propor prosperidade, autoestima e sucesso. Em nossa ótica, são termos que retroalimentam metanarrativas fictícias, capazes de tranquilizar e até de orientar a humanidade em seus anseios e expectativas de futuro, mas que – no fundo – não passam de narcóticos para uma vida realmente intensiva, que não deixa de fluir enquanto estamos direcionados para outros empreendimentos, sejam eles oníricos ou transcendentes.
Enfim, “bom” seria se todos encontrassem o seu príncipe ou sua princesa (encantados, é claro), se pudessem combater e vencer os dragões e viverem felizes para sempre. Porém, até que isso permaneça utópico, resta-nos resistir e buscar a intensidade da vida em sua sensibilidade. Como diz o poeta Vinicius de Moraes, no final do Soneto de fidelidade: “que seja infinito enquanto dure”.
Em suma, a busca por finais felizes, presente tanto nos contos de fadas quanto nas promessas religiosas e mercadológicas, revela-se como uma projeção de sentido para além do presente. Além disso, ao deslocar a pulsão da vida para um futuro idealizado, corre-se o risco de transformar a felicidade em ilusão, tornando o agora enfadonho e esvaziado. Esperança e sonhos, embora mobilizadores, podem operar como narcóticos, adiando a intensidade da existência em nome de uma promessa sempre porvir. Nietzsche e Spinoza mostram, cada qual à sua maneira, que a vida encontra plenitude não na transcendência, mas na imanência das pulsões vitais. Assim, o desafio consiste em resistir às narrativas que prometem uma felicidade atemporal e reconciliar-se com a potência do instante.
[1] Palavra de origem grega que designa finalidade ou escopo. O sentido aqui empregado reforça a ideia da busca por um sentido para a existência.
[2] Criatura mística de aparência híbrida e animalesca, associada à mitologia grega. Aqui utilizada como sinônimo de fantasia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 320 p.
SPINOZA. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. 240 p.
Douglas Meneghatti.
Doutor em Filosofia e Escritor.




Ótimo texto! O "felizes para sempre" dos romances, ou das histórias infantis, tende a se desconectar a realidade vivida por pessoas que apenas almejam se encontrar; e a esperança de um final feliz nem sempre significa o que se necessita.