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A perspectiva metafísica: um ensaio sobre o paraíso

A perspectiva metafísica entende que o universo teve começo, o que implica a tese de ele não ser eterno...

Introdução


O material aqui apresentado se refere a um posicionamento pontual da Academia Platônica de Brasília acerca de uma análise presente em uma das obras de Anderson Cruz, cuja intenção é propor uma visão alusiva à estrutura organizada a partir de uma origem, tal qual sequenciou toda a existência neste mundo. E tal proposição se dá – por meio da razão – pela necessidade metafísica quanto às possibilidades explicativas da transição de um paraíso para o mundo humano.


Nesse sentido, o contraponto à perspectiva materialista é (para nós) crucial ao entendimento da estrutura organizativa que rege tudo o que há e que revela, em cada manifestação natural, um impulso transcendental para uma ordem, também metafísica, condutora das circunstâncias emergidas do universo.


A visão ateísta do paraíso


Anderson Cruz é um escritor brasileiro que nos oferece obra intitulada Um sacerdote diante do abismo[1], na qual relata o drama de um sacerdote cristão que transita de um dogmatismo religioso idealizado para uma racionalidade filosófica, virtualmente, mais lincada à realidade. A par da leitura agradável e do drama cativante, o que chama atenção, no texto, é a visão de mundo de um dos personagens[2], justapondo o mundo dos homens à figura de um paraíso idealizado, que, em alguma medida, parece povoar a cabeça de todas as pessoas, seja como algo utopicamente almejado ou como algo irremediavelmente perdido.


Sendo transparente a fragilidade humana, a ideia de paraíso parece fazer parte do modo humano de enfrentar a imensidão do universo que o envolve.


Na obra mencionada, o personagem – atento às diferenças que separam a ética e os ideais religiosos, da natureza humana que os molda – elabora o esquema reproduzido abaixo, na Figura 1[3], com o qual provoca materializa o seu tom provocador, insinuando a sua crítica.


Figura 1 – Um olhar ateu sobre a relação do paraíso cristão com o mundo terreno.

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O autor não se estende na consideração dos significantes escolhidos para caracterizar as duas instâncias; porém, pelo conjunto da obra, parece evidente entender que os crentes – para os quais a crítica se destina – debatem-se entre um ambiente sagrado almejado e outro, mundano, a ser evitado, sob o desafio hercúleo de sublimar a natureza humana estrutural inerente.


Para além do drama, porém, o que aguçou o meu espírito metafísico foi o fato de o personagem – sendo ateu e, nessa condição, desprovido de uma perspectiva metafísica – ter conseguido vislumbrar parte da verdade que, supostamente, apenas uma perspectiva metafísica seria capaz de revelar. Dos seis significantes relacionados, três seriam também pertinentes a uma mente metafísica que tentasse formular uma cosmovisão, aproximando mundo e paraíso, a saber: Deus, natureza e homem.


A melhor explicação que me ocorreu para esse fato é de se tratar, no caso, de um ateu muito singular, que admite um princípio originário de todas as coisas e apenas refuta a ideia de um Deus interveniente nos negócios humanos. Os outros três significantes – escravidão, liberdade e preconceito –, na medida em que denotam valores sociológicos e psicológicos, não fazem parte do universo de significados propriamente ontológicos, fato esse que, de um lado, confirma a ausência da perspectiva metafísica e, de outro, dificulta que se vislumbre o caráter unitário ou o índice unificador do conjunto.


O resultado disso se evidencia como dificuldade para se entender, de modo evidente, o significado geral intencionado.


Um referencial metafísico


O fundo de referência da construção, porém, configurando a existência em duas partes (paraíso e mundo), parece promissor para se formular cosmovisão, conforme a perspectiva metafísica, ainda que situada em plano existencial superior àquele no qual se encontra a original teoria dos princípios de Pitágoras, que (em minha doxa, antes de Platão) inaugura a perspectiva metafísica no Ocidente.


Pitágoras também adota como referência uma dualidade[4] para tentar, racionalmente, explicar de que modo a existência brota e se desdobra. Entender e valorizar de maneira adequada esses dois princípios requer, entretanto, já estar munido da perspectiva metafísica; e explicá-la, em termos ontológicos[5], constitui desafio respeitável que, virtualmente, admite aproximações sucessivas, mas, dificilmente, solução definitiva.


Talvez, em razão do modo contemporâneo predominante de pensar, temos encontrado dificuldade de conectar as mentes pós-modernas e fazê-las perceber as potencialidades da perspectiva metafísica para o próprio enfrentamento das questões que afligem estes tempos, de modo que usar a dualidade “paraíso” e “mundo” para explicar a perspectiva metafísica pode representar uma solução mais amigável à mente contemporânea. Tentemos, adiante, demonstrá-la.


Figura 2 – Um olhar metafísico sobre o paraíso.

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Esse esquema já indica o resultado da uma relevante meditação e antecipá-lo no texto visa a permitir tomá-lo como referência em uma análise e, assim, facilitar o entendimento de quem nos acompanha.


A perspectiva metafísica entende que o universo teve começo, o que implica a tese de ele não ser eterno[6]. O princípio de todas as coisas recebeu na história muitos nomes, sendo o mais conhecido deles: Deus. No entanto, Platão, em alguns de seus diálogos, o designa Uno[7]. Dado que essa fonte originária transcende ontologicamente a criação, reservamos a ela um âmbito distinto daquele do paraíso, uma vez que este também foi criado, pertencendo, portanto, a um âmbito ontológico distinto.


Como se observa, em sentido geral, isso significa inverter a posição original de mundo e de paraíso, implicando admitir que a criação se inicia pelo paraíso, como, aliás, sugerem as vertentes cristãs.


Nesse sentido, a criação se indica genericamente por natureza. Não uma natureza qualquer, mas uma natureza criada e determinada pelo logos, isto é, por leis universais que designo[8], genericamente, por inteligência criativa e por inteligência organizativa. Com essa solução, distingue-se a inteligência que gera os fenômenos existentes da inteligência que molda e organiza, particularmente, cada um dos incontáveis fenômenos presentes no universo.


À vista disso, ocorre que as leis universais determinam que essa geração se dê no sentido de complexidade organizativa crescente, fato que gerou camadas fenomênicas dotadas de diferentes conteúdos informacionais – camadas conhecidas, ordinariamente, por mundo mineral, mundo vegetal e mundo animal. Nesse contexto, não é difícil perceber que todo o processo de criação da existência se realiza sob um impulso universal para a crescente complexidade organizativa, orientado do simples para o complexo.


Em direção à complexidade


O impulso para a complexidade permeia toda a natureza criada e pode ser reconhecido em todas as camadas fenomênicas. O mundo mineral suporta e alimenta o mundo vegetal, e, com isso, os seus sais e minerais “evoluem” para a camada fenomênica mais informada dos vegetais. Os vegetais, por sua vez, alimentam o mundo animal com seus frutos e suas fibras que, nesse ato, transitam para a camada fenomênica seguinte em densidade informacional e passam a integrar o mundo animal. No próprio mundo animal, carnívoros se destacam de herbívoros, configurando uma camada animal organicamente superior, aproveitando a proteína dos vegetarianos, para conquistar organismos melhores ou mais poderosos. Com esse propósito, precisam caçá-los e comê-los. Segundo a Antropologia, essa escalada organizativa culmina em uma espécie superior singular: a hominídea.


Contudo, a transição para Homo Sapiens representa um salto de envergadura, em termos evolutivos; e no esquema referencial apresentado acima está indicada a inauguração ou o advento do mundo humano.


Como é de conhecimento geral, os animais percebem as coisas circundantes e, nesse sentido, sabem, mas – tal como o hominídeo – não se dão conta disso. O homem se destaca deles, não por saber, mas por saber que sabe. Psicologicamente, esse resultado se dá por meio de uma inferência de autoconsciência, cujo objeto não é um fenômeno externo, mas sim a própria consciência. Algo que os demais animais não conseguem realizar; e o hominídeo também não realizava, o que implica considerar que este último não tinha consciência dos seus atos e não meditava a respeito deles. Sendo assim, no paraíso, apesar de existir mortes, não existia pecado.


Metaforicamente, essa passagem do paraíso para o mundo humano é descrita na cultura de diferentes formas. Em particular, pertinente é uma descrição antiga[9], onde uma deusa, apiedando-se do destino dos homens, presenteou-os com a capacidade de pensar. Uma versão mais conhecida é aquela, segundo a qual, uma serpente teria dado a um casal[10] uma maçã mágica que tinha o poder de habilitá-los a pensar tal e qual fazia o criador do paraíso. Ambas as descrições são adequadas em determinadas condições de entendimento. A questão mais relevante aqui seria saber se nos convém entender essa passagem como expulsão do paraíso ou se devemos entendê-la como conquista da humanidade.


De qualquer forma, uma vez inaugurado o mundo dos homens e desviados estes do destino inevitável de extinção dos hominídeos, o homem constatou que ainda não estava completamente a salvo e que as novas circunstâncias ofereciam tanto habilidades como desafios inusitados, igualmente decisivos à sua sobrevivência.


O convívio social implica normas éticas


A nova habilidade inferencial lhe possibilitava interpretar e entender e a condição gregária estrutural lhe impunha necessária convivência com seus pares, a fim de capitalizar as conveniências da ação coletiva coordenada, que amplificava a sua força e a sua capacidade de sobreviver. Nessas circunstâncias, as leis naturais vigentes no paraíso, que regulavam as suas relações para com a natureza em geral, precisavam ser ponderadas quando aplicadas ao convívio social do grupo, de sorte a ser preservada a coesão interna, algo indispensável para a manutenção do potencial coletivo. A solução encontrada, então, foi o estabelecimento de regras de convivência que, sinteticamente, designamos por ética.


Posto o homem dotado de razão, com as interpretações decorrentes e as regras de sobrevivência, estavam assentadas as bases para um ciclo existencial exitoso para a nova espécie, exceto por um pequeno detalhe: que a capacidade de discernimento, em consonância com as leis universais, não constitui um presente pronto e acabado da natureza, mas uma habilidade incipiente que precisa ser desenvolvida e aperfeiçoada no decorrer do tempo.


Assim como o restante da natureza, a razão também se estende do simples para o complexo; e conforme a complexidade crescente da natureza, resta evidente que a qualidade da interpretação se torna crescentemente aderente à realidade, na medida do aperfeiçoamento da capacidade interpretativa. Em consequência, a capacidade de discernimento e o entendimento acerca do mundo e das circunstâncias evoluem da mesma forma, partindo de um ponto inicial decididamente precário, longe de corresponder à real compleição da natureza. O resultado dessa precariedade interpretativa se encontra exaustivamente registrado na história, na forma de incontável rosário de conflitos e de tragédias.


Conclusão


Lançando um olhar abrangente sobre o modelo interpretativo, descrito na Figura 2, verificamos que a perspectiva metafísica nos propicia algumas conclusões interessantes. Primeiramente, revela não ser possível retornar ao paraíso inicial sem abdicar da razão e da condição humana. Realisticamente, e portanto, resta-nos a opção de concluir o domínio da razão e viabilizar civilização superior adequada a uma humanidade mentalmente madura e consciente das condições que emolduram a sua existência, neste universo.


Em segundo lugar, resta evidenciada a necessidade de completa superação dos instintos herdados do hominídeo ancestral, sem ignorar a sua presença no fundo do inconsciente, mas provendo cada indivíduo da força interna necessária para mantê-los adormecidos e inoperantes, em nome da eficiência e do bem-estar coletivos.


Finalmente, cumpre reconhecer que a perspectiva metafísica empana a visão idílica que temos do paraíso ao contemplar a presença dos carnívoros e a busca deles por alimento, bem como ao conceituar o paraíso como ausência de pecado. O carnívoro não é movido por ódio ou por rancor, mas pela fome. Logo, não cabe falar em remorso ou em pecado, uma vez que são conceitos que apenas aparecem no âmbito do mundo humano. Apesar disso, é preciso navegar nesse ponto com cuidado. Não se pode entender que pecado se resuma à não observância da ética e que não resulte do descumprimento das leis universais que regem a natureza, pois estas antecedem a ética humana, sendo possível – dentro dessas leis – que uma ética (por exemplo, proibindo humano matar humano) seja formulada. Assim sendo, a ética não pode revogar as leis naturais, pode apenas estabelecer condições ou modular a sua aplicação no âmbito social, em face das conveniências coletivas ou do estágio civilizatório.


Por conseguinte, o ponto central entre as duas figuras, apresentadas aqui, é a capacidade organizativa da perspectiva metafísica frente ao caráter disperso ou difuso de quem não opera com ela. Dessa forma, na segunda, há uma ordem perceptível que na primeira se faz ausente, ao menos no primeiro olhar, resultando em uma perspectiva estruturada e coerente com os aspectos fenomênicos deste mundo.


[1] Publicado pela editora Appris, Curitiba, 2024.

[2] Robson Wilson, personagem excêntrico e polêmico de Um sacerdote diante do abismo.

[3] Imagem representativa, baseada na imagem original do livro de Anderson Cruz.

[4] No caso, o ilimitado e o limitante, onde o primeiro é absolutamente indeterminado e que a determinação apenas torna-se possível quando impõe, ao ilimitado, um limite.

[5] Essencial, nesse contexto, não confundir o termo ontológico com conceitos religiosos.

[6] Para que seja possível a justificativa racional acerca desse seu advento, lança-se mão de um princípio originário de todas as coisas, este, sim, incriado.

[7] Sendo esse (Uno) o termo preferido dos filósofos.

[8] Não somente eu, mas também é designado pela Academia Platônica de Brasília.

[9] Descrição antiga antes mesmo do surgimento da escrita, segundo a qual (conforme reza certa lenda) em priscas eras.

[10] A saber, Adão e Eva.


Rubi Rodrigues.

Economista e fenomenólogo.




1 comentário


Anderson Cruz
há 2 dias

Eu agradeço imensamente pela dedicação que você, Rubi, investiu para produzir esse material formidável. Maravilhado eu fiquei por saber que Um sacerdote diante do abismo lhe serviu de inspiração.

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