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Parte 2 - Além das sombras

Atualizado: 8 de nov.

Se aprende com desconforto de tão acostumados que podemos estar com as trevas de uma percepção não questionada...

Quem possui a verdade? Quem é que – passando a experimentar o mundo fora da caverna em que viveu por anos – tem o direito de arrancar os outros de suas próprias sombras? Qual é o privilégio que foi dado a esse alguém que se vê sábio, a fim de zombar dos que decidem permanecerem ao lugar em que estão? Será que não teve ele os seus olhos cegados pela luz? Na primeira parte desta série (Filosofia para alienados), contemplamos o filósofo Michel Foucault para discorrermos sobre a fragilidade consciente que nos influencia quando escolhermos estar alheios a nós mesmos, ou seja, no lado oposto do cuidado de si (stultus). Neste artigo, refletiremos brevemente acerca do “mito da caverna”. Tal alegoria está registrada em A República, de Platão (430 – 347 AEC). Vamos ao mito:

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Especificamente no sétimo capítulo, o autor traz um diálogo entre os personagens Sócrates e Glauco em que o primeiro imagina uma caverna subterrânea. Nela, homens viviam com pescoços e pés acorrentados desde a infância, sem poderem virar o rosto para trás, mas podendo olhar somente para frente onde avistavam uma parede. A iluminação partia de uma fogueira que se encontrava em uma colina, por trás dos aprisionados. Entre eles e a fogueira, havia uma estrada que por ela passavam pessoas transportando objetos de diversos tipos. Os acorrentados não viam nada além das sombras desse movimento na parede que se encontrava à sua frente, tomando para si uma verdade de que tais imagens projetadas eram a realidade, pois era tudo o que podiam ver. Ao continuar, Sócrates propôs que um daqueles prisioneiros fosse arrancado dali, sendo conduzido a olhar para trás e caminhar pela caverna. Ele iria avistar tudo o que, de fato, acontecia e – sendo um grande espanto para ele a verdade de que a parede apresentava-lhe apenas fantasmas da realidade – sua mente entraria em conflito. Enxergando uma luz que entrava por uma fresta, teria sido atirado para fora da caverna e seus olhos estariam cegos por alguns instantes, devido à luz do sol. Precisaria habituar-se para apreciar o mundo inteligível e vendo ele a água, os animais, a procedência das sombras, o sol, a lua, as pessoas e tudo o que poderia ser visto nessa descoberta, se alegraria por ele mesmo, mas lamentaria por seus companheiros que ainda permaneciam presos. Pensando em seus amigos de infância, ele decidiria voltar à caverna. Ao sentar em seu lugar, seus olhos cegariam novamente por se distanciar da luz do sol. Sua intenção seria contar-lhes a novidade e que tudo o que aparecia na parede não era a realidade que precisariam conhecer. Porém, ao observarem sua vista estragada, zombariam e ririam concluindo não valer a pena conhecer o que existe na região de cima. Para defenderem a realidade que estavam a ver na parede, iria eles permanecer no mesmo lugar, acorrentados. Considerando a possibilidade de poderem arrancar-lhes as correntes, o matariam sem qualquer arrependimento. (PLATÃO, 380 AEC).


Analisemos, agora. Para Platão, o mundo inteligível é o que há no lado de fora da caverna, melhor dizendo, a luz, a sabedoria. A caverna simboliza o mundo visível e como o conceito indica, tudo o que se vê de forma apenas aparente.


As correntes, por sua vez, impedem o sofrimento necessário para se alcançar a autonomia de si próprio, pois como Platão mesmo disse: “a ideia do bem é a última a ser aprendida”. Essa ideia se aprende com desconforto de tão acostumados que podemos estar com as trevas de uma percepção não questionada. No entanto, não significa possuí-la porque ao retornarmos à caverna, podemos nos iludir novamente com o conforto da escuridão. A saída da caverna significa enxergar o mundo por meio da suspeita, pois ela nos conduz a verdades que não queremos aceitar. Por isso, espantoso é quando a sabedoria nos arranca da caverna, pois tudo é sofrível e nada confortável. A cegueira, nesse sentido, se mostra necessária porque é o intermédio entre as sombras e a realidade. O retorno à caverna denota a convivência com aqueles que ainda não se permitiram estar cegos pela luz. Estando eles confortáveis e certos de suas convicções, fazem afirmações e entram em disputas pessoais para defenderem a verdade daquilo que veem; tudo causado por uma alienação que é possível que exista desde a infância, moldando padrões comportamentais que os mantém aprisionados em ideias que adquiriram daqueles que se mostravam “donos da verdade”. Ao fim... Conhecer o mundo inteligível nos impulsiona a arrancamos quem amamos de suas cavernas, a fim de que apreciem uma realidade totalmente diferente; e isso é legítimo. Porém o quê fazer se quem está acorrentado não aceita ser liberto? Deve aquele que está livre se sentir superior a quem está olhando para a parede?


Portanto, a sabedoria nos cega para enxergarmos a realidade além dos fantasmas, mas não nos dá o direito de impor a alguém o abandono de suas sombras, pois a compreensão – pelo menos nesse caso – é o princípio da sabedoria. Anderson Cruz.

Escritor, terapeuta e licenciando em filosofia.



Nota: Leia na íntegra a Parte 1, clicando aqui.

4 comentários


Lucas Santos
12 de nov. de 2024

Ótima referência e o texto complementa muito bem o primeiro capítulo. Parabéns mais uma vez.

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Maria cruz
04 de fev. de 2023

Forma mais fácil de entendermos o mundo inteligível de Platão não há!

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Convidado:
18 de jan. de 2023

Eu li o primeiro e gostei mto, mas esse aki me fez pensar no q eu tenho q me libertar.

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Convidado:
18 de jan. de 2023

Ainda não tinha visto uma síntese tão facil de entender sobre o mito da caverna de Platão como esse artigo. Parabéns, caro Anderson, essa leitura está me sendo muito útil.

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