Parte 2 - Além das sombras
- Anderson Cruz
- 3 de jan. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 31 de mai. de 2023
Se aprende com desconforto de tão acostumados que podemos estar com as trevas de uma percepção não questionada...
Quem possui a verdade? Quem é que – passando a experimentar o mundo fora da caverna em que viveu por anos – tem o direito de arrancar os outros de suas próprias sombras? Qual é o privilégio que foi dado a esse alguém que se vê sábio, a fim de zombar dos que decidem permanecerem ao lugar em que estão? Será que não teve ele os seus olhos cegados pela luz, ao conhecer o mundo inteligível? No artigo “Alienação – Parte 1” eu trouxe o filósofo Michel Foucault para nos esclarecer sobre o conceito “alienado” de modo que tenhamos consciência de nossa fragilidade ao escolhermos estar alheios a nós mesmos, ou seja, no lado oposto do cuidado de si (stultus). Neste artigo, vamos refletir brevemente sobre o “mito da caverna”. Tal alegoria está registrada na obra chamada “A República”, de Platão (430 a.C. – 347 a.C.). Vamos ao mito da caverna:

Especificamente no sétimo capítulo, o autor traz um diálogo entre os personagens Sócrates e Glauco em que o primeiro imagina uma caverna subterrânea. Nela, homens viviam com pescoços e pés acorrentados desde a infância, sem poderem virar o rosto para trás, mas podendo olhar somente para frente onde avistavam uma parede. A iluminação partia de uma fogueira que se encontrava em uma colina, por trás dos aprisionados. Entre eles e a fogueira, havia uma estrada que por ela passavam pessoas transportando objetos de diversos tipos. Os acorrentados não viam nada além das sombras desse movimento na parede que se encontrava à sua frente, tomando para si uma verdade de que tais imagens projetadas eram a realidade, pois era tudo o que podiam ver. Ao continuar, Sócrates propôs que um daqueles prisioneiros fosse arrancado dali, sendo conduzido a olhar para trás e caminhar pela caverna. Ele iria avistar tudo o que, de fato, acontecia e – sendo um grande espanto para ele a verdade de que a parede apresentava-lhe apenas fantasmas da realidade – sua mente entraria em conflito. Enxergando uma luz que entrava por uma fresta, teria sido atirado para fora da caverna e seus olhos estariam cegos por alguns instantes, devido à luz do sol. Precisaria habituar-se para apreciar o mundo inteligível e vendo ele a água, os animais, a procedência das sombras, o sol, a lua, as pessoas e tudo o que poderia ser visto nessa descoberta, se alegraria por ele mesmo, mas lamentaria por seus companheiros que ainda permaneciam presos. Pensando em seus amigos de infância, ele decidiria voltar à caverna. Ao sentar em seu lugar, seus olhos cegariam novamente por se distanciar da luz do sol. Sua intenção seria contar-lhes a novidade e que tudo o que aparecia na parede não era a realidade que precisariam conhecer. Porém, ao observarem sua vista estragada, zombariam e ririam concluindo não valer a pena conhecer o que existe na região de cima. Para defenderem a realidade que estavam a ver na parede, iria eles permanecer no mesmo lugar, acorrentados. Considerando a possibilidade de poderem arrancar-lhes as correntes, o matariam sem qualquer arrependimento. (PLATÃO, 380 AEC).
Paremos um pouco... Para Platão, o mundo inteligível é o que há no lado de fora da caverna, ou seja, a luz, a sabedoria. A caverna simboliza o mundo visível e como o nome já diz, tudo o que se vê de forma apenas aparente.
As correntes impedem o sofrimento necessário para se alcançar a autonomia de si próprio, pois como Platão mesmo disse: “a ideia do bem é a última a ser aprendida”. Essa ideia se aprende com desconforto de tão acostumados que podemos estar com as trevas de uma percepção não questionada. No entanto, não significa possuí-la porque ao retornarmos à caverna, podemos nos iludir novamente com o conforto da escuridão. A saída da caverna significa enxergar o mundo por meio da suspeita, pois ela nos conduz a verdades que não queremos aceitar. Por isso, espantoso é quando a sabedoria nos arranca da caverna, pois tudo é sofrido e nada confortável. A cegueira, por sua vez, se mostra necessária porque é o intermédio entre as sombras e a realidade. O retorno à caverna representa a convivência com aqueles que ainda não se permitiram estar cegos pela luz. Estando eles confortáveis e certos de suas convicções, fazem afirmações e entram em disputas pessoais para defenderem a verdade daquilo que veem. Tudo causado por uma alienação que é possível que exista desde a infância, moldando padrões comportamentais que os mantém aprisionados em ideias que adquiriram daqueles que se mostravam “donos da verdade”. Ao fim... Conhecer o mundo inteligível nos impulsiona a arrancamos quem amamos de suas cavernas, a fim de que apreciem uma realidade totalmente diferente e isso é legítimo. Mas, o que fazer se quem está acorrentado não aceita ser liberto? Deve aquele que está livre se sentir superior a quem está olhando para a parede?
A sabedoria nos cega para enxergarmos a realidade além dos fantasmas, mas não nos dá o direito de impor a alguém que abandone suas sombras, pois a compreensão – pelo menos nesse caso – é o princípio da sabedoria. Anderson Cruz.
Escritor, terapeuta e licenciando em filosofia.
Nota: Leia na íntegra a Parte 1, clicando aqui.
Ótima referência e o texto complementa muito bem o primeiro capítulo. Parabéns mais uma vez.
Forma mais fácil de entendermos o mundo inteligível de Platão não há!
Eu li o primeiro e gostei mto, mas esse aki me fez pensar no q eu tenho q me libertar.
Ainda não tinha visto uma síntese tão facil de entender sobre o mito da caverna de Platão como esse artigo. Parabéns, caro Anderson, essa leitura está me sendo muito útil.