TESES SOBRE DEUS
- Anderson Cruz

- 11 de out. de 2024
- 16 min de leitura
Atualizado: 6 de set.
Toda existência, em qualquer lugar, é a afirmação do poder que não podemos descrever.
Apresentação
Permita-me iniciar este material dando-lhe uma breve exposição sobre a minha motivação para registrar o que você lerá adiante.
Há tempos, eu me deparo com questões que dificilmente obtém respostas seguras e concretas. O tempo passa e as heranças culturais são transmitidas sem que percebamos o poder que uma superstição tem para formar uma fé antagônica à razão. Uma fé que se sustenta sobre teses infundadas, criando e intensificando conflitos internos que ela mesma origina.
Crer naquilo que produz alívio e satisfação não é um problema em si; mas negar a inquietação que assalta uma mente perturbada, isso sim é um imenso problema. Inquietação essa que é fundamental para descortinar o teatro de uma sociedade que foi forjada por tradições sagradas e que, por esse motivo, se absteve da condição básica da razão contra qualquer tipo de escrutínio e contestação. Um teatro social que se apoia na distorção de textos antigos e na manipulação de oralidades e símbolos culturais que, há séculos, perderam sua essência.
Destarte, a teologia enraizada na sociedade contemporânea se alimenta do entendimento distorcido sobre as culturas de povos antigos; e, desde então, forjou-se um padrão moral que não é – necessariamente – bom, mas que é poderoso suficientemente para nutrir esperanças baseadas em um paradoxo divino. Um padrão que combina pouca lucidez com muita estupidez; no entanto uma suspeita quanto ao tal jamais deve ser ignorada.
Nesse cenário nós fomos lançados e, em uma caverna, a nós foi revelado apenas o que nos alienou. A saída dessa caverna está acessível, mas parece estar obstruída a muitos.
Em razão disso, dou-lhes 10 teses e 13 asserções como um convite à reflexão sobre muito do que fomos ensinados sem qualquer rastro consciente. Portanto, leia com atenção, mantendo um olhar crítico, desconsiderando o viés religioso que, ainda, possa carregar.
Se puder, tenha uma ótima leitura.
Tese 01. A natureza é encontrada em todo lugar.
Acordar cedo e apreciar o amanhecer, se encantar com o sorriso de um filho, relaxar com o afeto do cônjuge, cumprimentar pessoas ao caminhar, encher os pulmões para respirar o ar de um novo dia, observar o canto dos pássaros, o ar movimentando as folhas nas árvores, o sol brilhando no imenso azul, as nuvens se formando lentamente ou o mar batendo em suas pernas... Todo aquele que se atenta para essas experiências consegue – verdadeiramente – sentir Deus.
A diversidade do mundo encanta e o fluir natural da vida chega a causar um nó na garganta. Por ventura, estaria Deus além de tudo o que vemos?
Ao falarmos de natureza, abordamos tudo o que existe e funciona naturalmente, mas – tão logo – nós tomamos a vida selvagem e seu habitat como a principal referência; a diversidade que existe antes da existência humana, fluindo para si, sem padrões morais e conceitos éticos; sem bondade e maldade. Apesar de toda essa estrutura, a natureza está além; pois, também, engloba toda a vida humana.
Nesse sentido, um humano alimentado pela ideia de que a natureza existe para lhe conceder recursos favoráveis aos seus interesses, perdido se encontra na crença de que toda extensão fora de si está ao seu dispor, pois nós somos parte, não o todo.
Tese 02. Os humanos estão conectados a tudo.
Entrelaçamos sonhos, compartilhamos emoções... Tornamos a vida ainda mais prazerosa. Misterioso é o mundo que tanto vibra e que tão menos o conhecemos.
Somos conectados pelas vibrações e há quem defenda que tal sintonia haja apenas entre humanos. Uma grande limitação ideológica, pois essa conexão se estende a outros animais, assim como a qualquer existência, seja ela pensante, ou não.
Isso parece um tanto fantasioso – e de fato parece –, no entanto, quando refletimos a respeito das sensações que temos por influências do mundo externo, percebemos o quanto somos parte do todo. Uma manifestação que se revela no olhar, no respirar, no tocar e nas emoções que temos a cada vivência consciente; tudo provando a perdurável agregação.
Um pouco mais de atenção e impressionados nos situamos quando observamos o poder que a brisa tem de nos acalmar, associando-se ao ar que flui em nossos pulmóes. Percebemo-nos emocionados com um aperto de mão caloroso, mesmo sem avistar o fluxo energético passando de um corpo ao outro. Do mesmo modo acontece quando a paz nos toma em um ambiente que vibra serenidade, harmonizando as nossas vibrações. E surpresos nós ficamos, também, com o afeto apaixonante que uma criatura peluda pode nos dar, quando não se sente ameaçada.
Nada se separa, não importa a distância em que dois corpos estão. Mesmo tão longe, é possível que elos se mantenham, não pela razão, mas pelo que se sente; isto é, pela natureza.
Por sua vez, no que lhe concerne, o humano costuma se orgulhar de sua racionalidade em relação às outras espécies, considerando-se um ser especial, com privilégios e capacidades exclusivas. Não obstante, em razão de conflitos em seu âmago, essa mesma racionalidade o coloca em um confuso limbo de pensamentos, rejeitando – prepotentemente – a ideia de semelhança a outras formas de existência.
Sendo toda existência conectada a outra, o humano (não tão especial assim) é, apenas, uma versão formada nesse mundo de mistérios impérvios.
Nele, atraímos e somos atraídos. Uma energia desobrigada que une e desune; uma força que nos faz sentir a presença do que não se enxerga e, por isso, não se descreve; uma sintonia não percebida que causa encontros e reencontros; junção que aproxima olhares, que cruza vidas sem o compromisso de se ter um motivo elucidativo; descuidos que chamam o cuidado; sentimentos entrelaçados. Tudo acontecendo no mesmo cenário, amplo e imensurável, pragmático e representativo. Tudo conectado.
Tese 03. Do natural surge a ideia do sobrenatural.
Apreciando manifestações reveladas, a curiosidade nos conduz a rastrear algo além do natural. Imaginar o que possa haver em um campo transcendente move milhões de aventureiros intelectuais. Hipóteses que sustentam deduções e estas, que formam convicções.
O instinto nos empurra para a busca da experimentação; e conhecer a metafísica é uma das maiores ambições humanas. Mas qualquer porção de lucidez indica que uma convicção sobre o incompreensível é produto da subjetividade; e somente a insatisfação com o natural promove a sugestão da possibilidade de chegarmos ao além. Desse modo, parece-me verdadeiro dizer que tudo o que se pensa sobre a metafísica tem como base o campo físico.
Não importa aonde formos, chegaremos sempre ao ponto em que o discernimento virá por meios naturais, onde o que interpretamos como sobrenatural se faz a partir do natural; isso porque tudo é natureza.
Natureza, então, para além das florestas, das mais diversificadas espécies existenciais, assim como além da aparência do céu; natureza sendo tudo o que podemos avistar e/ou sentir; natureza sendo o universo e este, sendo a própria natureza.
Uma manifestação que impacta por sua beleza; que encanta por sua imprevisibilidade; que reage a tudo o que lhe afeta; e que se conecta com o humano, porque a natureza e ele são um.
Dessarte, somos todos nós natureza; somos todos nós parte de algo ainda maior.
Contudo, no que consiste esse algo?
Tese 04. Não há nada abaixo de Deus.
“Deus está acima de tudo”. Essa ideia se consolidou por gerações. Porém, se tudo o que existe (inclusive nós, humanos) parte de uma mesma fonte, tudo é composto por ela; e se consideramos essa fonte sendo Deus, tudo é Deus. Nesse caso, como pode, então, Deus estar acima de si próprio? Se Deus está acima, acredita-se que tudo o que veio dele está abaixo. Então, estaria Deus abaixo de si mesmo?
Considerando a ideia de que tudo o que compõe o universo seja parte da mesma fonte, não existe acima ou abaixo.
Tese 05. O mundo não é separado de Deus
Acredita-se que o universo está em constante expansão, o que nos leva a pensar que ele existe para funcionar autonomamente, regido por suas leis que abrangem todo o restante. Isso significa que o fluxo universal é determinado pelas interconexões dentro dele mesmo – ações e reações que provocam consequências e que nos afetam direta ou indiretamente.
À medida que observamos o cosmos (pelas nossas imensas limitações), sua grandeza se revela impressionante aos olhos curiosos. Sua complexidade é tamanha, mas insuficiente para impedir que tudo funcione naturalmente, sem a necessidade de intervenções. A natureza e o universo, portanto, são um só elemento.
Então, de onde vêm as respostas que precisamos?
O desejo por encontrar um deus interveniente, acomodado em algum lugar além do firmamento, que redesenha o curso do mundo para atender a orações daqueles que o agradam, faz borbulhar de emoção todo aquele que busca por soluções enigmáticas. E, mesmo assumindo que se conheça imperfeitamente a possível estrutura da metafísica, o ato de aceitar um deus possuidor de uma consciência semelhante à humana tornou-se uma norma doutrinal, de modo que, ao negá-la, consequências deliberadas (pelo deus personificado) se manifestarão. De onde vêm as respostas que procuramos? Segue firme esse mistério.
Contudo, encontrar algo que seja acessível a poucos, sugere conferir – a quem o encontra – poder e autoridade sobre os demais e essa possibilidade transborda a cognição individual, estendendo-se ao interesse coletivo; por isso, nós vemos muitos buscando entender o inalcançável.
Essa ânsia pelo abstrato é comumente observada em doutrinas religiosas, como o Cristianismo. Laços de dependência são construídos com os adeptos, os quais aceitam se submeter ao subjugo em troca de bênçãos que lhes são prometidas.
A propósito, a sede pelo privilégio de um conhecimento é o estímulo ideal para a criação de ideias trajadas de pseudoverdades, apresentando argumentos convincentes, com uma característica que é peculiar: afirmações que não podem ser contestadas.
Nesse contexto, um mito deixa de ser a expressão poética de uma interpretação para se tornar verdade literal e absoluta. A expectativa, diante disso, é atrair mais seguidores que rejeitam qualquer oportunidade que os faça perceber os equívocos de uma narrativa fabricada.
Por esse viés, religiosos de séculos atrás construíram uma verdade que – ideologicamente – determinou duas vias: mundo e Deus.
Moldaram a percepção quanto ao universo para que, por ela, pudessem definir tudo o que se opusesse ao “reino” de Deus; e, com isso, consideraram a si mesmos estrangeiros, tornando este plano indesejado diante das sofridas maleficências.
Imaginaram um rei antropomórfico, que criou o universo a partir de suas ordens autocráticas em que o poder de suas palavras promoveu toda a existência. Com isso, passaram a acreditar que o mundo é de uma natureza externa a Deus.
Por conseguinte, acreditar que o mundo está separado (e que ele é a fonte de todo mal) leva qualquer pessoa a sucumbir à ilusão propagada pela teologia contemporânea.
Tese 06. Deus não é uma entidade humanizada.
O ser humano parece emanar e receber tudo o que precisa ou tudo o que provoca, pois a conexão com a natureza é permanente e cada um experimenta, em algum momento da vida, o que o mundo tem a convergir.
Diante disso, aquele que acredita em uma entidade divina – como a que fora construída pela doutrina cristã – jamais se atentará que, ao elevar a sua voz ao metafísico, pronuncia-se a este mundo. Mas basta um olhar crítico e questionador para a percepção de que, ao desejarmos respostas, devemos observar que a natureza está comunicando a todo instante, a fim de entendermos que o sobrenatural está no natural.
Uma equação impossível de ser resolvida, já que o que consideramos extrauniverso parece estar no universo em variadas formas, o que não se acomoda em nosso discernimento.
Nada fácil é percebermos que quando pedimos algo, o universo se movimenta; que tudo está conectado; tudo está neste mundo; tudo é este mundo; isto é, a natureza, ou o universo, é tudo. Ao que podemos chamar de Deus, além disso?
Tese 07. O deus relativista é uma criação.
Os conceitos teológicos consolidaram a imagem de um poderoso mitológico sentado em seu trono, respondendo a todos conforme a fé e a oração de cada servo, exigindo oferendas para eleger os que serão “salvos”, desacolhendo os anticristãos e favorecendo os sacerdotes banhados em óleo “santo”, os quais creem serem promovidos a anjos de um povo. Um delírio pertencente à classe eclesiástica, a qual prega segregação, preconceito e discriminação, negando culturas pagãs para se autodeclarar eleita por um deus que ela mesma criou.
Dentro desse contexto, uma casta de líderes religiosos afirma ter intimidade com esse deus (que relativiza suas deliberações) e usa essa suposta ligação para influenciar a imaginação dos seus fiéis, levando-os a seguir um personagem que lhes incuta medo.
Sendo Deus justo – assim como os mesmos eclesiásticos afirmam –, essa tal representação divina não pode estar equivalente à força produtora de tudo o que existe; e por essa razão, o deus defendido pelo Cristianismo não pode ser justo e, sequer, Deus.
Tese 08. Deus é incognoscível.
A ousadia (ou petulância) para descrever Deus é parte da soberba humana de tentar entender uma realidade que está além de sua insignificância. A cada explicação intelectual, a cada aventura religiosa, é possível notarmos o paradoxo em que vivemos.
Deus é tão claro quanto a origem do universo que, diante de uma infinidade de teorias improváveis, continua a ser um mistério por bilhões de anos. Entendê-lo é o grande desafio humano, mas séculos e séculos se passaram e o que temos são apenas gênios recolhidos em sua estupidez. Várias tentativas e todas fracassadas.
No tempo dos pré-socráticos[1], ideias ideias conflituosas surfaram a onda da originalidade, apesar da grande importância à ciência cosmológica. Pensadores que arriscavam suas crenças, a fim de explicarem a essência de todas as coisas. Convictos, expuseram suas percepções naquilo que lhes parecia óbvio e, a partir delas, deixaram suas marcas na história. Vejamos:
Tales de Mileto (624 – 585 AEC[2]) tinha a água como a fonte original de tudo o que existe; Anaxímenes de Mileto (585 – 524 AEC) via o ar como a causa de todas as coisas; e Heráclito de Éfeso (540 – 470 AEC), o fogo. Anaximandro de Mileto (610 – 546 AEC) creu no ápeiron (elemento infinito e indefinido); Pitágoras de Samos (582 – 497 AEC) acreditava na matemática; e Parmênides de Eleia (510 – 445 AEC), na imutabilidade e imobilidade como essência das coisas. Houve ainda os da Escola Pluralista, afirmando existir mais de uma causa essencial para todas as coisas.
Muitas teorias e – sem qualquer dúvida – com amplos fundamentos, mas também com muitos contraditórios.
Então, onde está o problema? Na tentativa da definição.
No decorrer do tempo, os humanos ampliaram a complexidade ao interpretarem Deus a partir de suas lentes, o que culminou em alienação de povos que se convenceram do apelo à benevolência divina. No entanto, antes mesmo dessa alienação se consolidar, Epicuro de Samos (341 – 271 AEC) parece ter trazido uma questão que poderia pôr à prova essa convicção com o seu famoso paradoxo, chamado popularmente de Paradoxo de Epicuro (clique aqui para ver).
Na sutileza, ele nos trouxe as atribuições de onibenevolência, onisciência e onipotência, contrapondo uma à outra, o que contribuiu – posteriormente – na conclusão de que Deus é, afinal, incognoscível.
Portanto, se fosse Deus como o Cristianismo diz ser, seria conflituoso em si mesmo; e não teria coerência em suas decisões. Obviamente que, na forma pensante de um devoto, é aceita a ideia de um deus que precisa tomar decisões constantemente para que o curso do mundo chegue ao fim revelado por um livro sagrado; um fim que, há tempos, se tornou o terror dos cristãos ensoberbados.
Trata-se de uma soberba que os impede de perceber que a clareza sobre Deus está na obscuridade daquilo que ele é. Com isso, afastam-se e escondem-se em seus templos como se eles fossem parte externa do mundo, tentando recolher o máximo de adeptos que possam negar este mundo em nome de uma promessa falida por conta dos meios necessários para alcançá-la.
Mesmo assim, não estão dispostos a reconhecerem o genocídio intelectual que causam, até hoje, em cada comunidade que é manipulada pela ideia do sagrado conhecimento.
E por assim dizer, um saber não questionado não passa de ilusão do conhecimento almejado. Destarte, na escala da estupidez, essa ilusão está na prateleira mais alta da ignorância.
São equivocados (os devotos) porque não compreendem a verdade sobre Deus; e a única verdade é que Ele não pode, na verdade, ser conhecido pela inteligência humana; nem tampouco pode ser definido. Portanto, um ser incognoscível.
Tese 09. A ideia do paraíso é um capricho.
A religião cristã, há séculos, atrai adeptos para vender uma ilusão travestida de verdade; e os tais são convencidos a negarem a própria vida para viverem em função de um paraíso inexistente. Digo inexistente porque o que há (se houver) do outro lado não existe para quem está deste. Mas os cristãos caminham alienados sem perceberem a manifestação de Deus, porque buscam encontrá-lo fora deste plano, seguindo uma receita religiosa[3], com ritos e sacrifícios. Não percebem o quanto estão cegados pela vontade de se verem salvos e – como se fossem heróis – de salvarem os outros.
Deus não é o que parece ser e não deixará de ser o que não sabemos. No entanto aquele que pensa ter o conhecimento definitivo sobre Deus está a caminho do abismo.
Tese 10. A justiça teológica se realiza pela condenação moral.
Os ególatras santificados alegam serem conhecedores dos desígnios divinos; para eles, alguns ritos, incluindo dias de jejum e oração forçados – com uma sensação de alívio –, são o suficiente para se autoafirmarem salvos em detrimento de outros.
Falam de si mesmos como conhecedores da verdade, mas essa estética serve apenas para cortinar o desespero que haveria se algumas de suas certezas fossem questionadas.
Para manter-se de pé em sua missão, essa ordem intitulada sagrada (os que se dizem santificados) criou uma disputa vaidosa, resultante de uma ideia de espiritualidade meritocrática e, com isso, condenou[4] aqueles que professaram crenças em outros ritos que não os dos santos[5]. Para estes, há um deus benevolente que lhes conforta e lhes liberta com o seu poder à base de justiça[6], mas encurralados ficam quando esse mesmo deus abre mão de sua bondade (em nome dessa mesma justiça) para retirar a sorte dos injustos[7].
Embora o cenário seja convincente no imaginário, o que se vê – ao final – são axiomas neutralizadores do raciocínio lógico, pertencentes a pessoas desatinadas por uma crença intolerante a tudo o que se diz contrário; tudo porque a ilusão de conhecimento os faz tolos de persuasão sofista.
Para desatar os atados, aqui eu proponho algumas questões imprescindíveis:
É possível entender Deus? Considerando essa possibilidade, seria Deus alguém limitado pela cognição humana? Aliás, ele é alguém? Poderia ser ele desvendado?
Penso que a melhor resposta seja “não” para todas as perguntas; e afirmo que o caminho para obter uma faísca de entendimento sobre esse assunto, o melhor é buscar entender o que Deus pode não ser.
Asserções que liquidam o caráter antropomórfico de Deus
Asserção 1: Ele não é alguém – não é uma pessoa com a qual haja uma interlocução racionalizada; portanto, do mesmo modo, o retorno não se dá na forma como se espera.
Asserção 2: Deus não é carente de afeto – aqui, carência e afeto devem ser entendidos. O primeiro exprime falta de algo, o que não é possível porque quanto a Deus, não há falta. O segundo significa aproximação e aceitação, o que é (também) totalmente incoerente, considerando que Deus é tudo e está em tudo; logo, não há como se aproximar porque não há como se afastar; assim, também, ele não pode rejeitar o que criou[8], pois se assim fosse, falaríamos de arrependimento em seu feito, o que caracterizaria vulnerabilidade – como nós, humanos – e isso, sendo verdade, não se trataria de Deus.
Asserção 3: Ele não é justificável – uma afirmação justificada pela impossibilidade de descrevê-lo, embora possa ser idealizado conforme as ilimitadas alegorias pertencentes à nossa capacidade criativa, fazendo-nos até tê-las como uma verdade absoluta. Na verdade, a imaginação utilizada para construir uma imagem representativa de Deus é a mesma que projeta o diabo e o pinta de vermelho.
Asserção 4: Não é influenciável – um ser humano, por exemplo, é influenciado pelo meio externo que, por conseguinte, influencia seus pensamentos; já no caso de Deus... Existe algo fora dele? Se ele existe como um ser supremo, nada está sem
pertencê-lo. Portanto, não há o que o influencie.
Asserção 5: Deus não é moldável – porque nada o subordina.
Asserção 6: Não é alterável – não há nada que o ser humano faça que o atraia para suas necessidades; nada que façamos pode ser relevante para que Deus intervenha, pois não se vulneraliza conforme as causas humanas e, portanto, não se altera. Preocupar-se com os problemas existentes no mundo parece não ser uma característica divina.
Asserção 7: Não castiga, nem perdoa – se ele é o criador[9] (e/ou produtor) e tudo o que fez possui perfeição, como poderia tomar medidas radicais contra o seu próprio feito? O ser humano é constituído de raiva, alegria, tristeza, medo; e com o passar do tempo, vai desenvolvendo alívio, apego, rancor, culpa, pânico, ódio, solidão, etc. São sentimentos controversos que o conduzem a resultados extremos: ou para autocuidado ou para o descaso de si mesmo. Por outro lado, caso Deus castigasse, necessariamente nós precisaríamos aceitar que Ele estivesse deliberando (mesmo sendo benevolente) contra alguém que infringiu alguma norma estando tomado pelos sentimentos produzidos pelo mesmo Deus. No entanto, diante de uma punição, há a decepção; uma expectativa frustrada de alguém que se surpreende por ver o outro cometer um delito. Diante disso, tendo Deus como o criador da humanidade, poderia decepcionar-se com sua própria criatura? Não seria essa possibilidade uma fraqueza divina, isto é, uma demonstração de que as ações e reações humanas estão fora do controle do criador? Como pode, então, Ele estar no controle de tudo? Do mesmo modo, o perdão. Este parte de quem alimenta uma esperança de que, em um futuro, o perdoado evite o mesmo erro; na verdade, é a espera de uma nova decepção, visto que, para qualquer humano, todos os outros são imprevisíveis e, por isso, surpreendem com ações inesperadas. Destarte, um perdão divino representaria a esperança que Deus teria sobre o humano, como se não soubesse o que o tal faria em uma próxima ocasião. Poderia Ele, então, se surpreender com uma pessoa que (tomada por rancor e ódio) assassine outra, se as emoções e os sentimentos são qualidades humanas e, portanto, atribuídas por Ele mesmo?
Asserção 8: Deus não é ególatra – e, portanto, não precisa ser adorado. Ao contrário, temos religiosos cristãos [em termos gerais] que vão assiduamente aos templos sagrados diante de uma necessidade que é, em muitos casos, induzida. Vestem as melhores roupas, calçam os melhores sapatos... Tudo para que tenham uma aparência inquestionável, pois assim deve estar quem vai adorar um deus que precisa ser adorado, que necessita satisfazer o seu próprio narcisismo.
Asserção 9: Ele não é uma existência causada – relevante é a consideração na ideia de que Deus não teve uma origem, pois o contrário traria – impreterivelmente – a necessidade de uma causa; mas, havendo uma causa que não seja ele próprio, é necessário que se acredite haver uma causa superior; e isso sendo uma verdade, não poderia se tratar de Deus. Portanto, Deus não existe sendo causado, a não ser que ele seja a causa de tudo e, inclusive, a sua própria. Seria isso uma verdade absoluta ou uma possibilidade? A resposta está além do que podemos compreender.
Asserção 10: Ele não é seletivo – e, por isso, a ideia de eleger um povo e separá-lo para o cumprimento de suas promessas, como se outros povos não fossem dignos do amor divino[10], torna-se mais um delírio criado pela superstição religiosa. Pregam um deus amoroso, mas o mesmo contrapõe a si mesmo quando a sua balança de justiça se mostra descompensada, pois não poderia haver similitude no amor divino, se caso fosse verdadeira a alegoria de que o povo escolhido foi preparado para destruir outros povos em função de uma terra prometida. Dito isso, podemos dizer que Deus não é condenador daqueles que decidiram não seguir o Judaísmo, o Islamismo ou o Cristianismo. Por essa razão, caso houvesse uma seleção predeterminada, um povo seria o escolhido para viver algo transcendente enquanto outros padeceriam até o cumprimento de uma condenação, também predeterminada. Nesse caso, qual motivo teria Deus para dar vida a povos já condenados?
Asserção 11: Ele não põe ninguém à prova – pois as leis do universo tratam de entregar conforme o que ecoamos do nosso interior.
Asserção 12: Ele não é o deus do Cristianismo – pois o tal é escravo da fé, o que o torna submisso; e tal religião o coloca como refém de sua própria criatura. Esse deus foi criado para servir; um arquétipo incongruente com a natureza divina. Os que acreditam nessa criação humana cobram desse deus uma solução diante da carência que possuem, imputando-lhe a obrigação da providência que tanto aguardam. Como essa motivação, tentam provar a esse deus uma fidelidade em troca de respostas agradáveis e confortantes.
Asserção 13: Deus não possui trono – um rei está acima para que todos saibam quem detém o poder; mas tal superioridade se faz pela necessidade constante de afirmar o seu poderio, evitando a sensação de ameaça por alguém que [em algum momento] possa almejar o seu lugar. Nesse sentido, quem pode fazer com que Deus se sinta ameaçado em sua superioridade? Além disso, um rei exige que seus comandados o reverencie, a fim de medir a fidelidade de seu povo. Quanto a Deus, não há necessidade alguma – principalmente no que tange à vaidade – de ser reverenciado; pois, se é Deus, por que haveria ele de afirmar a sua supremacia? Portanto, Deus não está sentado em um trono como um rei. O trono[11] de Deus é a natureza e toda a manifestação de sua beleza e, por ela, podemos reverenciá-lo, reconhecendo que toda existência, em qualquer lugar, é – inevitavelmente – a afirmação do poder que não podemos descrever.
Tendo em vista todos os argumentos apresentados, há uma certeza a qual podemos ancorar a nossa confiança: Deus é como não podemos saber.
Notas
[1] Existentes no período entre os séculos VII e V AEC.
[2] “Antes da Era Comum”. O que, também, pode-se dizer “antes de Cristo”.
[3] A moral cristã.
[4] Concernente à condenação moral que o Cristianismo imputa aos de fora.
[5] Refere-se aos que se autodenominam santificados, purificados, sobrepondo-se aos demais.
[6] Conceito de justiça defendida pela moral cristã.
[7] Adjetivo pronunciado pelos cristãos, pois assim é visto todo o que não segue os preceitos do Cristianismo.
[8] Considerando, nesse caso, a possibilidade de Deus ter criado tudo o que existe naturalmente.
[9] Menciono o termo “criador” não no sentido cristão, como um deus que criou tudo em seis dias, mas no sentido de que de Deus tudo surgiu. Por isso, também vale o termo “produtor”.
[10] Uma menção à tradição cristã, a qual apresenta a ideia de um deus bondoso para com os que a ele servem.
[11] Como consolidação de uma obra inexplicável.
Referências Bibliográficas
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2009.
CAMUS, Albert. O mito do Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2018.
DUMER, Pablo Fernando. A coragem como elemento de cura ontológica. Anais do Congresso Estadual de Teologia, 2016. Disponível em:
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2015.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2014.
PLATÃO. Fedro. Belém: Edfupa, 2016.
PLATÃO. Timeu. Lisboa: Instituto Piaget, 2023.
SAND, Shlomo. A invenção do povo judeu. São Paulo: Benvirá, 2011.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
SPINOZA, Benedictus de. Tratado teológico-político. São Paulo: Perspectiva, 2020.
Anderson Cruz.
Terapeuta Cognitivo Comportamental.
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Material brilhante, que mostra como é difícil falar de Deus. Parabéns pela forma com que expressou cada tese.
Realmente conhecer a Deus é um feito que ninguém é capacitado e afirmar o que não podemos saber, beira a loucura.
Texto maravilhosamente escrito, com a racionalidade devida porque falar de Deus é um assunto de grande complexidade. Parabéns por defender tão bem o seu ponto de vista.
Fico imaginando os cristãos lendo isso, deve ser uma dor de cabeça tentar encontrar argumentos para rebater tudo isso.
Isso é polêmico demais!