Parte 1 - Filosofia para alienados
- Anderson Cruz

- 1 de jan. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de nov.
Aquele que estende a mão ao stultus e o puxa para o outro lado, onde o cuidar de si seria o princípio de seu novo compromisso...
Introdução
Recentemente, em uma roda de conversa, alguém perguntou se é possível a desalienação. Uma questão intrigante que me fez pensar mais a fundo sobre um tema abordado por tantos anos de história e pensado por tantos humanos que buscaram o porquê do descaso quanto ao cuidado de si.
Ao tratarmos disso, imprescindível é entendermos a alienação em sua prática e seus efeitos; um ato que requer completo afastamento do risco de uma perspectiva alienada, pois somente por essa cautela é que poderemos alcançar uma definição congruente que nos conduza a uma elucidação.
Definição do conceito
Partiremos do conceito dito em Ciências Sociais, no qual uma pessoa alienada é:
Aquela que se encontra alheia a si mesma, que não percebe a sua própria maneira de pensar e nem reflete sobre suas escolhas. É indiferente a si mesma e, por isso, se torna escrava às sugestões externas que chegam por diversos meios de comunicação.
Dessa forma, vamos além na análise da alienação prática:
Uma pessoa alienada socialmente é aquela que se permite ao subjugo diante de outra que demonstra possuir autoridade, mesmo que por meio apenas de uma crença. Como resultado, inferioriza-se sem poder perceber o quão dependente está; um agravamento em que pensar por si só seria um sofrimento... Como um viciado em drogas no período de abstinência.
Como uma das principais características é a fácil aceitação de um ponto de vista exposto persuasivamente. Por conseguinte, ela se envolve na subjetividade alheia desconsiderando qualquer hipótese de dúvida, dispondo-se a defendê-la veementemente, se preciso for.
Diante disso, para esse momento cabe o conceito defendido por Sêneca em um diálogo com Serenus, lembrado por Michel Foucault:
“Bem, vou dar-te o diagnóstico que te convém, vou dizer-te exatamente como estás. Mas, para bem fazer-te compreender como estás, vou dar-te primeiro a descrição do pior estado em que se poderia estar, que é, na verdade, o estado no qual se acha quem não começou ainda o percurso da filosofia nem o trabalho da prática de si. Quem não teve ainda cuidados consigo, encontra-se no estado de stultitia”. (FOUCAULT, 1982).
Baseado nesse diálogo, Foucault afirma que esse estado mencionado por Sêneca se encontra no outro polo em relação à prática de si. Seria como se você concedesse autoridade à outra pessoa para que direcionasse a sua vida sem qualquer intervenção e que, ao final de tudo, você seria o (a) responsável pela ignorância latente em suas decisões.
Destarte, a alienação é uma ilusão disfarçada de realidade. Ela não permite uma visão holística e seu raciocínio passa a estar submetido a manipulações, pois uma pessoa alienada não pensa por si só.
Nesse sentido, Foucault traz o termo “Stultitia” para essa análise. Trata-se de um termo originado em Latim, sendo o mesmo que “estultícia”, que significa “estupidez”. Logo, seu produto é “stultus”, isto é, “estúpido”.
O stultus é aquele que não cuida de si, pois a sua estupidez é suficiente para deixa-lo à margem de sua própria vida. Ele prefere ser guiado como se fosse cego às circunstâncias e sua ignorância chega a causar indignação em quem o vê replicando palavras desprovidas de autenticidade.
A atualidade em que estamos, nós podemos observar vários stultus. Muitas vezes os encontramos ao nosso lado... Às vezes, stultus somos nós mesmos.
Definitivamente, o stultus é a pessoa alienada.
O retorno à realidade
Até aqui, chegamos a uma nova questão: é possível alguém nascer alienado?
Uma questão como essa nos faz sair da zona de conforto e pensar o que, talvez, nunca pensamos.
Como já vimos, para uma pessoa ser considerada alienada ela precisa abrir mão do seu direito de raciocínio para se obrigar a acreditar no que uma outra diz. No entanto, um recém-nascido não possui consciência formada, por isso não pode raciocinar. Assim sendo, não pode abrir mão do que não possui. Logo, não nascemos alienados, mas podemos assim nos tornar a partir de nossas vivências.
Para entender o processo de desalienação, Foucault identifica um problema, o qual é a imensa dificuldade de uma pessoa passar do estágio de ignorância para o de sapiência, respondendo à seguinte questão: é possível alguém alienar-se por si só?
Enquanto reflete sobre esse problema, em A hermenêutica do sujeito, Foucault cita os tipos de mestria e destaca a mestria socrática. Como ele mesmo a definiu, “a mestria do embaraço e da descoberta, exercida através do diálogo”.
Para ele, o outro é necessário; e mediante sua sábia intervenção, o stultus entende o objeto de sua busca pessoal: o seu próprio eu.
O outro, nesse caso, não poderia ser um educador em sua forma tradicional; assim como não seria um pai ou uma mãe que ensinariam modos e costumes segundo suas tradições, não havendo como garantir que os filhos seguiriam seus ensinamentos; nem tampouco uma referência religiosa, já que seus olhares apontariam apenas para as convicções inflexíveis de sua instituição.
Afinal, quem é esse operador que resgata aquele que se perde pela vida? Quem é o libertador do ente alienado?
Para Foucault, a luz de Sêneca é irrefutável:
“É aquele que estende a mão ao stultus e o puxa para o outro lado, onde o cuidar de si seria o princípio de seu novo compromisso. O operador que se apresenta é, com certeza, o filósofo”. (FOUCAULT, 1982).
É ele que traz provocações e tira o stultus do campo da ignorância, que duvida dos pensamentos e questiona as crenças de bloqueio. Tudo à base da compreensão, tendo o diálogo como o meio pelo qual ela acontece.
A mestria socrática, assim como várias correntes filosóficas, contempla a arte de filosofar como o guia para o reencontro com si mesmo. Trata-se do caminho para a autorreflexão, a dúvida, o autoquestionamento, a ressignificação... A desalienação.
Notório é que a percepção de Sêneca é radical, sem margens para exceções. Porém, tal máxima serve a todas as pessoas? Não haveria ninguém que alcançasse a desalienação por si só?
Isto posto, utilizando-nos da uma linguagem flexível e democrática, podemos concluir que a desalienação por si mesmo (a) é uma possibilidade dependente do quanto alienado alguém está, afinal nós mesmos podemos – por que não? – ser esse “outro” que nos conduz de volta à realidade, pois [às vezes] o que pensamos é fruto de uma dominante indisposição cognitiva. Superando-se essa dominância nefasta, supera-se – também – a dependência social.
Posicionamento filosófico
A filosofia, entre suas diversas contribuições, nos guia a uma pergunta poderosa que nos protege do risco da alienação. Com isso, havendo axiomas de alguém que se diz conhecedor de um assunto o qual você não tem domínio, orienta-se o questionamento adiante:
Baseado em quê você está fazendo tal afirmação?
Diante dessa questão, o outro deverá apresentar o fundamento de suas palavras. Sendo esse fundamento comprovado, a orientação será inquestionável. Entretanto, sendo originado de uma experiência pessoal (o famoso achismo), não passará de uma crença, em outros termos, não comprovada e, portanto, passiva de dúvida.

Embora seja um posicionamento reativo e, ao mesmo tempo, provocador, inevitavelmente traz o risco de nos afastar de muitas pessoas, até as mais próximas.
Enfim, possível é abordarmos esse tema em todas as áreas, seja quanto a trabalho, religião, família, escola e até mesmo amizades. Todavia o importa saber como as educação está se sustentando e como as orientações são absorvidas.
Você concorda com tudo o que uma pessoa diz, verifique se já não está alienado (a).
Anderson Cruz.
Terapeuta e licenciando em filosofia.
Nota: Vá direto para a Parte 2, clicando aqui.




Tudo bem fundamentado.
Uma grande verdade! Precisamos estar atentos para cada tentativa alienação.